Um dia li numa revista o depoimento angustiado de um pai que perdera seu filho estupidamente num acidente de automóvel. A exemplo de outros milhares de pais brasileiros me comovi com aquele desabafo sem poder imaginar que também eu experimentaria a dor exasperante da morte de um filho em circunstâncias parecidas. Meu doce, bem humorado e irresistivelmente amoroso Thiago se foi, com apenas 18 anos, numa madrugada gélida de Porto Alegre. Eram três rapazes a 100 km/h. O carro bateu num contêiner de entulho colocado irregularmente em parte na calçada, em parte na rua, sem qualquer sinalização. O desaparecimento de um filho equivale a ficarmos aleijados, a perdemos para sempre uma parte do corpo, do coração, da alegria de viver. Porém, mesmo nos dias de maior sofrimento, nos quais cada objeto, recanto da casa ou ruído evoca a presença do Thiago, não aceito e não posso aceitar a idéia de destino, de fatalidade, através da qual a sociedade brasileira, isenta-se covarde e mediocremente a carnificina, do apocalipse que virou o trânsito em nosso país. Essa mesma sociedade, que reage com indignação a assaltos e seqüestros, fica anestesiada perante o maior dos horrores.
Um horror provocado pela condescendência geral: autoridades que não fiscalizam, políticos para quem o assunto não rende votos, pais que entregam, criminosamente, seus carros a jovens sem habilitação e, muitas vezes, como se vê nas praias gaúchas, a meninos de 14 e 15 anos. Até mesmo os educadores, que pelo seu poder de persuasão, poderiam assumir uma posição frente à grande tragédia brasileira deste final de século, silenciam como se os 50 mil mortos por ano e as centenas de milhares de feridos e aleijados não passassem de uma fantasmagórica estatística.
Por isso, por não admitir que o sangue de rapazes como Thiago e seu amigo Rodrigo, continue sendo derramado em vão, é que tenho falado, pedido, gritado, dia após dia, a todos aqueles que podem deter esta guerra absurda.
Aos pais, para que neguem nos fins-de-semana suas armas mortíferas a adolescentes despreparados e, no mais das vezes, sem carteira. Por favor, recusem, digam não, mostrem a esses jovens que é necessário cumprir as leis, que uma nação não se faz sem respeito à legislação. Caso o contrário, muitos deles continuarão voltando pra casa em caixões fechados.
Com a autoridade concedida pela dor, cobro dos Senadores da República a aprovação do novo Código de Trânsito, que dormita no Senado, mas que parece ser mais rígido do que o atual. Se possível, tornem essa lei mais flexível, amplie as multas, as penalidades. Simplesmente cassar carteiras, num país, onde em 25 anos de motorista, tive que apresentá-la apenas três ou quatro vezes, é piada.
Cobro também do Ministro da Justiça, homem íntegro e sensível, que proíba, através de decreto, a veiculação de publicidade celebrando a velocidade de novos modelos de automóveis, nacionais e importados. Ela infringe a lei, Sr. Ministro. E induz ao crime.
Mas é nos professores que deposito a maior esperança. Há quase trinta anos tenho trabalhado como professor de matemática em cursos supletivos noturnos, presídios, colégios, cursinhos, e vi e atesto o poder que os educadores possuem de levar seus alunos a reflexão. É preciso criar com urgência, em caráter obrigatório, a disciplina Educação para o Trânsito do primeiro ao segundo grau. Não uma cadeira dada de forma convencional, mas algo que envolva o aluno em prestação de serviços comunitários, visitas a centros de habilitação, apoio a campanhas de conscientização pública, etc. Só assim um rapaz não se sentirá um imbecil ao volante por obedecer as regras. Nem um careta por usar cinto de segurança.
Ao ver o morticínio da Guerra de Canudos, Euclides da Cunha teria dito que “o governo devia ter mandado mestres-escola e não fuzis e canhões”. Senadores da República – pensem em Euclides – , ainda é possível introduzir esta disciplina, em caráter obrigatório, na lei das Diretrizes e Bases que circula pelo Congresso. Mandem mestres-escola ensinarem as leis de trânsito e muitos brasileiros serão salvos.
Nada disso, é claro, restituirá a vida de meu filho. Ele estudava no cursinho onde sou professor, preparando-se para ingressar na faculdade de Direito. Em cada sala de aula que entro eu o revejo e o tenho um pouco de volta. As lembranças se avivam e o sofrimento também. Em compensação, o Thiago viverá sempre assim, na minha memória: jovem e belo. Nunca, nunca envelhecerá.
Olhando para os meus alunos, que têm diante de si o ciclo natural da existência, eu sei que devo dizer não a força da morte, que é preciso clamar pela vida. Urgentemente!
Régis Gonzaga
Presidente do Conselho Deliberativo da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga