“Esses seres superiores” – Publicado em Zero Hora

Um evento essencial é aquele depois do qual você nunca mais será o mesmo. Entre os muitos eventos essenciais positivos na vida de uma pessoa, nada supera em intensidade o de se ter um filho. Pela mesma razão, o evento negativo mais intenso é o de se perder um filho, não só pela incompreensível inversão da ordem biológica da vida, mas pela extinção aguda e definitiva da usina propulsora de toda a energia que nos move e nos impulsiona a partir do momento em que cheiramos o pescoço das nossas crias pela primeira vez. A frase “nada será como antes”, com toda a certeza, foi cunhada neste instante, e a emoção ficou lá, ingenuamente esperando ser substituída por uma alegria maior, que nunca chegou, nem chegará.

Saramago definiu filho como “um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é se expor a todo o tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente, e do medo de perder algo tão amado.”

Ainda que ele conclua que não podemos perdê-los porque não estão mais do que emprestados, nos sentimos os legítimos posseiros de suas vidas, sonhos e destinos. E da morte deles nunca nos recuperamos, passe o tempo que passar.

A atitude diante da perda é que pode ser diferente. Ainda que a maioria transporte a dor da ausência para a tristeza amarga da solidão e envelheça inconsolável, alguns conseguem arregimentar forças para a preservação da memória, revivida e energizada na luta contra a repetição da tragédia.

Quando o normal seria afogar as mágoas na aspereza da revolta e na aridez da incompreensão, alguns tipos emergem da catástrofe com a clara determinação de impedir que outras famílias sejam atingidas pela mesma dor que os mutilou.

De onde retiram essa força? Não tenho ideia, mas sei que eles são especiais.

E como esse comportamento é incomum, todos os que têm filhos se comovem ao ouvi-los, mesmo reconhecendo que é quase impossível imitá-los.

Ouçam a Diza Gonzaga falando de sua ONG na luta incansável para evitar a morte de outros Tiagos, ou o Beto Albuquerque contando da sua batalha para multiplicar por 10 o Banco de Medula Óssea por meio da lei que recebeu o nome do seu filho, para evitar que morram outros Pietros como o Pietro amado que ele não conseguiu salvar.

Quando depararem com a energia que ambos têm no olhar, saberão porque eles são seres superiores.

J. J. Camargo – Palavra de Médico – 30 de março de 2013

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