Do ano que ontem acabou e que hoje pouco é lembrado, um fenômeno em particular restou gravado em minha memória: a proliferação de borboletas em Porto Alegre. As inesperadas lepidópteras surgiram assim, do nada, em revoada, como seres encantados. São grandes e brancas, o que me surpreendeu, pois os espécimes mais comuns costumam exibir cores múltiplas. Além de alvas, todas apareceram presas ao asfalto, como se um colecionador extravagante tivesse se deliciado em adornar as ruas com seu acervo monocromático. No início, vi apenas uma. Depois, mais uma, e outra, e outras tantas que não pararam de pipocar nas ruas convulsionadas. Não interessava o bairro, rua ou até mesmo estrada: desde que fosse asfalto, logo brotavam as tatuagens brancas desafiando a rigidez do preto.
Nos últimos dias, trafegando pela Ipiranga, pela Erico Verissimo, pela estrada que liga Porto Alegre ao Vale dos Sinos e por outras vias, avistei algo que faltava para explicar a proliferação. Como nasceu uma borboleta? De uma crisálida. Das urdiduras finas do casulo, a vida se desprende e voa. Em minhas andanças pelo trânsito violento, porém, o que vi foram crisálidas mutantes, atraiçoadas. Corpos sem vida – atropelados, na maioria dos casos –, cobertos por uma mortalha improvisada. Podia ser um saco de lixo, um lençol alcançado por um morador, qualquer coisa que rapidamente escondesse a existência abreviada. Essas crisálidas são diferentes. Elas não geram uma borboleta colorida que voa, mas as brancas, que estampam oo asfalto como um emblema mórbido.
Essas borboletas-cicatriz pintadas no chão simbolizam a conseqüência letal de um acidente, de um atropelamento. Nasceram com propósito de lembrar a todos que é melhor tirar o pé do acelerador e respeitar as leis de trânsito, se não vai faltar tinta branca. E lembram também que os inquietos e empolgados integrantes da Fundação Thiago Gonzaga continuam sua missão de desafiar as trágicas estatísticas do trânsito brasileiro: a cada 24 horas, cerca de cem pessoas morrem e outras mil ficam com seqüelas permanentes. À Frente dos voluntários, segue a incansável Diza Gonzaga. Há 10 anos, o trânsito lhe arrancou um filho – talvez a pior das dores –, e nós ganhamos um anjo da guarda. Não conheço a Diza, mas se um dia encontrá-la, gostaria de abraçá-la, silenciosamente. Só o silêncio conseguiria expressar tudo o que se deveria dizer para ela.
Vitor Necchi – Jornalista